Iran Giusti
Com mais de 40 anos de carreira, a cartunista revela que atuação como militante LGBT invadiu seus quadrinhos, mesmo contra a vontade delaCom mais de quatro décadas se dedicando aos quadrinhos, a cartunista paulistana Laerte Coutinho se firmou como um dos maiores nomes das artes gráficas do País. Agora, ela se prepara para colocar todo o seu talento com a caneta para contar a própria história num HQ autobiográfico, que vai repassar sua vida profissional e pessoal, incluindo aí o processo pelo qual passou ao assumir uma identidade feminina, em 2004.
“Estou tentando me entender como artista gráfica. Ver aonde meu traço está indo e fazer um novo quadrinho, que vai ser bem complicado. Uma narrativa razoavelmente biográfica, abordando a minha juventude e maturidade. Resumindo dos anos 70 para cá, o que aconteceu comigo e com o Brasil”, conta Laerte.
Entrevista e ensaio com Laerte Coutinho: “Gostaria de não ter renegado minha homossexualidade por 40 anos”
Laerte Coutinho falou sobre o processo de adequação de gênero começado há 10 anos
Foto: André Giorgi
'Gostaria de não ter renegado minha homossexualidade por 40 anos', contou Laerte
Foto: André Giorgi
Laerte Coutinho: 'Eu tenho sido bem recebida, aplaudida pelo que eu faço'
Foto: André Giorgi
Laerte afirmou: 'Posso dizer que nós vivemos uma época tensa e que esta tensão é representada pelo conflito entre os avanços e a força de reação a eles'
Foto: André Giorgi
'Sempre fui gay, comecei minha vida sexual como gay, mas entrei em pânico e bani isso pra baixo do tapete', revela sobre seu passado
Foto: André Giorgi
'Acho que toquei num nervo social muito importante, a liberdade. Liberdade social e de orientação de gênero, que são coisas muito caras e relativamente recentes', explica a cartunista
Foto: André Giorgi
Laerte Coutinho Laerte chegou para entrevista usando maquiagem discreta, saia na altura dos joelhos, camisa regata branca, bolsa de pano e um inseparável leque
Foto: André Giorgi
'Me considero uma transexual, muito provavelmente bissexual. Mas isso deixou de ser uma preocupação, eu sei mais ou menos o que está valendo para mim', revelou Laerte
Foto: André Giorgi
Nas mais de duas horas de conversa Laerte falou sobre o filho, trabalho, processo criativo e vida afetiva
Foto: André Giorgi
Laerte Coutinho revelou sua inspiração: a psicanalista e pensadora Maria Rita Kehl
Foto: André Giorgi
'Mexer com a genitália é de uma complexidade que teria que ser uma solução muito boa para me convencer', conta sobre adequação de gênero
Foto: André Giorgi
O trabalho da cartunista contempla publicações fundamentais na história do HQ e das tirinhas no Brasil, como as revistas “Chiclete com Banana” - editada por Angeli, e “Piratas do Tietê”, com edição da própria Laerte. Deus, Suriá, Overman e Hugo Baracchini se destacam na galeria de personagens dela.
Não para deixar de citar ainda as tiras “Los Três Amigos”, que Laerte produziu ao lado Angeli e também do já falecido cartunista Glauco. Os personagens do trabalho, Angel Villa, Laerton e Glauquito, eram caricaturas dos próprios autores.
Além do trabalho como cartunista, Laerte também atuou como roteirista nos programas “TV Colosso”, “Sai de Baixo”, “TV Pirata” e “Fantástico”, todos da TV Globo. Atualmente, ele é um dos principais cartunistas do jornal Folha de S. Paulo.
Quando decidiu assumir sua identidade feminina, em 2004, o trabalho de Laerte ganhou novos rumos. Nos dez anos seguintes, o processo de trabalho da cartunista passou por reviravoltas. “Minha atividade profissional se solidificou e cresceu a luz de um procedimento muito claro: ideia, rascunho e desenho. Existia uma linearidade do meu processo produtivo que eu não tenho mais, e isso é foda”, avalia ela.
“Eu não tenho uma situação tranquila com o meu próprio desenho. Não é um ato de resolver coisas, desenhar para mim é entrar em um problema. Às vezes, isso é desagradável. Começo e não gosto, acho que não está resolvendo e que tem algo que eu não consigo ver. Faço dois, três, quatro e acabo entregando um porque está na hora de entregar. E tudo isso é recente”, desabafa Laerte.
VIDA PESSOAL INVADE VIDA PROFISSIONAL
A relação entre o seu processo de aceitação e a militância LGBT com o trabalho é também um tema confuso para a cartunista. “Em princípio são coisas independentes, mas sabe como é, acaba vazando. A própria militância que me empolgo em exercer entra no trabalho”, admite Laerte, revelando desconforto com essa invasão da vida pessoal na profissional.
“Eu particularmente não gosto muito da parte militante do meu trabalho, ela perde a flexibilidade, a ginga, uma gostosura que meu trabalho tem. Quando faço um trabalho muito palavra de ordem, muito linha pragmática, percebo que perco os personagens. A verdade flexível da construção do meu humor.”
Mas esse desconforto não impede Laerte de reconhecer a necessidade de militar, de participar de uma manifestação na rua e de fazer um trabalho assertivo e opinativo. “Quando você está à frente de uma situação de emergência, você tem que fazer algo que viola esse frescor e esse modo bailarino de se expressar, é preciso fazer algo dia tal, hora tal, todo mundo lá.”
Laerte percebe que esta ebulição interna dele muitas vezes confunde os seus leitores. “Estou vivendo processos de autorrevolução desde 2004, isto é muito legal. Muita gente olha meu trabalho e fala ‘é bobagem, ele está delirando’. Mas outras falam ‘é legal, interessante, gostei’. As pessoas olham com muitas cabeças, muitos olhos.”
Para a cartunista, seu trabalho atinge até as pessoas que dizem não o entender. “De algum modo, eles internalizaram aquilo. De algum modo, aquilo pode dar filhote na cabeça das pessoas. Aconteceu tantas vezes de eu olhar algo e pensar ‘que merda, que coisa esquisita’. E, de repente, você se pega lembrando ou relacionando algo com essa coisa. Uma vez comido, tá lá dentro de você.”