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Fê Maidel comanda a coluna "O T da Questão" no iGay e nessa semana abre a discussão sobre como você se vê e como as pessoas te percebem no mundoPassabilidade%3A ilusão de normalidade ou anseio da autenticidade?
Foto: Fe Maidel
Falar da passabilidade implica em refletir sobre aquilo que a sociedade imagina como natural. Este termo é usado quando a apresentação de uma pessoa “está passável”, conseguindo se “passar” por outra identidade diferente da que lhe é peculiar. Pode se referir a um disfarce, uma fantasia, um personagem. No nosso caso, o uso deste termo indica que a pessoa “parece pertencer ao sexo oposto”, em acordo com o modelo vigente de aparência e conduta.
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De fato, “passar-se” por algo diferente daquilo que é atribuído pode carregar, em si, a ideia de ilusão, engodo. Seria esta a intenção das pessoas trans? Ludibriar os sentidos, conseguir vantagens com isso? Assim opinam as vozes conservadoras. Mas, nas conversas que tenho com pessoas em transição, o que transparece é exatamente o oposto: a ilusão está em permanecer dentro dos padrões do que se chama “normalidade” e a passabilidade vem de encontro ao anseio da autenticidade.
Uma visão sexista de mundo
Através da história, aquilo que se considera apropriado a cada um dos sexos vem mudando. As culturas antigas, grega, romana, nipônica, judaica, partilharam o conceito confucionista de que a mulher era considerada inferior e o homem, superior. Pode-se perceber uma visão sexista do mundo ainda que, em alguns momentos, a figura feminina tenha sido valorizada em termos diferentes e até mais igualitários.
Algo semelhante ocorre na cultura ocidental contemporânea, a nossa cultura. Prevalece o princípio de que homens não devem “declinar” para uma posição “feminina”, “inferior”, enquanto que transitar do feminino para o masculino é enfatizado. Historicamente algumas culturas têm este movimento como demonstração ímpar de caráter e nobreza. As histórias de Joana D’Arc e Maria Quitéria ilustram isso ainda que, em sua época, tenham convivido com grande preconceito. A lenda de Mulan, idem.
Preconceito de dentro para fora
Há uma diferença fundamental entre querer ser de um jeito e querer apresentar-se de uma outra forma. Essência e existência. A Constituição Brasileira de 1924 atribuía à mulher o valor de uma propriedade e até meados dos anos 30 do século passado, mulheres não tinham sequer direito a voto. Aos homens, vestir-se com roupas femininas era considerado crime, ofensa, perturbação da moral e dos bons costumes. Isso não se restringia ao nosso país, essa realidade permeava quase (se não todos) os países do mundo.
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Por outro lado, até poucos anos atrás, a homossexualidade era considerada uma doença psiquiátrica. Na Inglaterra, cadeia e castração química eram algumas das penas possíveis. O “transgênero”, se posso usar esta palavra, ainda está no rol dos transtornos tratáveis pelos médicos psiquiatras. Quando uma pessoa traz para si o olhar do preconceito, provavelmente se trate de questão tão importante que sobrevivência, sociabilidade, viabilidade, escorram pelos dedos, e então surge a pessoa de fato.
Encontra-se pessoas trans em todos os extratos sociais, etnias, culturas, idades... o que as iguala? Acredito que a auto aceitação. Toda transição só pode ter perspectivas positivas se tiver como princípio e fundamento a auto aceitação. E a passabilidade está sempre presente, seja no desejo, seja na crítica ao comportamento, como uma sombra.
Frases como "ninguém diria que você não é um homem!" (no caso de homens trans), ou "você é uma mulher perfeita!" (no caso de mulheres trans) trazem essa visão na qual homens são de um jeito, mulheres são de outro. Podem parecer elogios, mas não são.
Deixo um pensamento, compartilhado comigo por Heitor Werneck: “Quando você imagina um jeito de ser e se apaixona por ele, e faz de tudo para alcançar este estado, será que vai continuar apaixonado, mesmo depois de alcançar o que almeja? ”. Semente para pensar a passabilidade. Para saber mais sobre transição e discutir o tema, clique aqui e acompanhe a coluna "O T da Questão no iGay".